Lendas urbanas postas ao juízo das garantias
Por Renato de Mello Jorge Silveira
Publicado originalmente no Conjur
Poucos assuntos foram tão mencionados, em especial na mídia nos primeiros dias de 2020, como a criação do juiz das garantias. Talvez faça algum sentido, principalmente em um país que elegeu o mundo do Direito como um de seus temas, senão de apreço, ao menos de debate diuturno. Entretanto, isso se dá em um perigoso cenário sem grandes matizes: ou se defende o instituto ou se mostra veementemente contra o mesmo.
Apoiadores históricos do presidente da República taxaram-no de traidor. Juristas vários mencionam a criação de uma quinta instância no país. Associações de magistrados ingressam na Justiça contra o instituto, dizendo ele afrontar a Constituição e que, caso se entenda por correta sua colocação, isso significaria que toda a Magistratura nacional esteve sempre errada e viciada. Doutra sorte, setores da Advocacia, professores de Direito e tantos outros magistrados e membros do Ministério Público assinalam que a consagração do juiz das garantias só melhoraria o sistema jurídico nacional, aprimorando-o. O cenário, enfim, mostra-se turvo. Poderia haver uma ambivalência de verdades de ambos os lados, ou haveria, de fato, um vício de compreensão de algum deles?
Com a devida vênia ao primeiro grupo, algumas ponderações devem ser feitas. Desde logo, é de se ver que a bandeira da chamada luta contra a corrupção parece se incomodar com mudanças no aperfeiçoamento da Justiça. Tal melhoria não significa dizer, desde logo, que existe um comprometimento deste ou daquele Juiz. Significa dizer, sim, que se deve evitar a possibilidade de que venha ocorrer eventual vício de percepção de algum magistrado ao longo de suas funções. Repita-se, não se afirma que o Juízo de Garantias venha a estabelecer um sistema de todo imparcial, mas ele, sem dúvida, minimiza potenciais problemas. Essa a lógica do sistema proposto. Mais Justiça e contenção de eventuais injustiças. Essa a premissa de fundo.
Isso parece ser aceito por boa parte dos atores penais, uma vez que as oposições, no mais das vezes, se dizem simpáticas ao aperfeiçoamento do sistema judiciário, apontando, primordialmente, problemas em sua execução. Aqui, contudo, outro ponto. Alega-se que ele pode gerar maiores gastos. Embora seja inegável a capacidade do Poder Público de agigantar a máquina, isso não necessariamente pode se mostrar como verdade. E a justificativa se encontra na mesma alegação para a não criação de novos tribunais federais, qual seja, a de que o aprimoramento da esfera judiciária pode suprir a necessidade, pura e simples, de mais servidores e juízes.
Também parece descabida a alegação de que, com o novo modelo, estar-se-ia violando o princípio do juiz natural. Esse contexto mudou, e, para isso, pode socorrer-se, ainda que com críticas, ao tão mencionado exemplo do DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais) de São Paulo. A fase preliminar de inquérito poderia, pois, muito bem ser gerida, ao menos em fase transitória, por juízes outros, que não se imiscuem na formação da culpa, sendo ideal, no entanto, que houvesse Vara para tanto. A meta a ser buscada, enfim, é a consagração das garantias da magistratura também ao Juiz de Garantias. Ainda que o DIPO não estabeleça idealmente a noção de Juiz de Garantias, seu exemplo é bastante claro para evidenciar certas falácias e lendas urbanas que estão a se formar.
Isso, para não se esquecer que quando da instalação de varas de pequenas causas, órgãos revisores passaram a se dar ainda em primeiro grau, tampouco violando qualquer hierarquia consagrada. Enfim, argumentos muitos parecem estar a serem utilizados para criticar uma ideia que só visa a melhorar o sistema.
Como poder-se-ia, então, resolver a questão do denominado rodízio? A Lei estabelece que em juízos únicos, só com um juiz, deve ocorrer o rodízio entre juízes. A questão, aqui, soa mais fácil do que aparente. Os respectivos Tribunais, Estaduais e Federais, poderão optar ou pela consagração de regiões em que existe a alternância de garantias entre comarcas distintas; ou pela criação ou diminuição de comarcas; ou, ainda, pelo estabelecimento de regiões do interior em que se verifiquem departamentos específicos para tanto, sendo certo que, em determinados casos isso implica normativa própria e eventual destinação orçamentária. É certo, no entanto, que as realidades e distinções entre as justiças devem ser levadas em conta.
A única crítica que parece restar ao instituto é em relação ao prazo de sua entrada em vigor. Uma transição tão radical talvez, de fato, devesse ser proposta em período um pouco mais estendido. Sobre isso, com a palavra o Supremo Tribunal Federal, que entendeu por bem sobrestar a entrada em vigor da dita normativa. A racionalidade de tal medida pode ser questionada, mas visa, em tese, a respostas mais adequadas a cada realidade. E vai caber ao Plenário do Tribunal avaliar a questão, bem como as questionáveis limitações e restrições da interpretação de não aplicabilidade a determinados juízos originários, do Júri, de violência doméstica e familiar ou eleitoral, todas postas pela decisão do Ministro Presidente. Mas mesmo assim, diga-se, tudo se mostra muito distante da assertiva de que o Juízo de Garantias esbarraria na vida real como um todo. Os primeiros passos devem ser, em nome da Justiça legítima, ser dados. Ao depois, que venham os devidos acertos. Combater-se a máxima de uma busca de uma mais ideal isenção do magistrado é que não pode se admitir.
Mais. Resta ainda outro alerta a ser dado, principalmente a quem, de forma descabida, percebe na inovação uma agressão ao que se poderia chamar de “Direito Penal da era Lava Jato”. O Juízo de Garantias não é, e nunca pretendeu ser, instrumento de impunidade. Não busca ofuscar o combate à corrupção, nem, tampouco, é sinônimo de articulação política contra a Lava Jato. É, sim, engrenagem de um processo mais adequado em que o magistrado deve se manter, em nome da Justiça, distante da construção processual. O fato desse afastamento não dificulta, senão efetiva a ideal reposta jurisdicional, rompendo, isso sim, qualquer sorte de possível e eventual promiscuidade entre sujeitos processuais. Iniciou-se a questão. Convém, agora, a paciência e sabedoria em relação à sua implementação, que deveria ser, sim, exaltada por todos aqueles que defendem e pregam por uma Justiça mais isenta e acima de simples preocupações administrativas. A personagem em pauta pode ser polêmica, mas, sem dúvida, é salutar.
Renato de Mello Jorge Silveira é presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e professor titular da Faculdade de Direito da USP.
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